Capítulo 14: 1974-1975: Zé do Caixão enfrenta “O Exorcista” – O Diabo é Nosso!
Por André Barcinski e Ivan Finotti
Mojica voltou da França com a bola cheia. Assim que
suas fotos ao lado de Christopher Lee começaram a aparecer nos jornais
brasileiros, a imprensa local, que o havia ignorado solenemente pelos últimos
quatro anos, publicou diversas reportagens sobre seu sucesso no exterior.
Aproveitando a boa fase, ele transferiu sua escola para um prédio de três
andares na avenida Celso Garcia, no Brás, e batizou o lugar de Caixolândia.
O produtor Aníbal Massaini Neto, filho do famoso
Osvaldo Massaini, ficou impressionado com a repercussão dos prêmios de Mojica
na Europa e decidiu convidá-lo para dirigir um filme. Naquela época, o mundo
inteiro estava surpreso com o sucesso de O Exorcista, o filme de William
Friedkin baseado no livro de William Peter Blatty. Massaini teve a ideia de
filmar uma espécie de versão brasileira de O Exorcista e lançá-la
simultaneamente ao filme americano, cuja estreia no Brasil estava marcada para
novembro de 1974.
Massaini deu uma cópia do livro para Mojica e pediu
que ele botasse uma história envolvendo possessão demoníaca (Mojica,
preguiçoso, mandou Nilce ler o livro e contar as melhores partes). O produtor
garantiu uma verba de 150 mil dólares – três vezes mais do que qualquer outro
filme de Mojica – e lhe prometeu um bom salário, além de 15% sobre o lucro
líquido do filme. Mojica procurou Rubens Lucchetti e pediu que escrevesse o
roteiro.
- Rubens, o Massaini vai bancar tudo, pode inventar
o que quiser! Exagera mesmo, põe uma mansão, um castelo!
Assim como já fizera em Ritual dos Sádicos,
Mojica queria misturar ficção e realidade, explorando sua própria fama. Ele
sugeriu a Lucchetti uma história no qual ele próprio, José Mojica Marins,
enfrentasse sua criatura, Zé do Caixão. Lucchetti gostou da ideia e escreveu Exorcismo
Negro.
Massaini contratou uma equipe de profissionais
gabaritados para trabalhar na fita, incluindo o fotógrafo Antônio Meliande e o
assistente de câmera Jorge Pfister Jr. O elenco teria Jofre Soares, Georgia
Gomide, Walter Stuart, Wanda Kosmo e iniciantes como Alcione Mazzeo e Marcelo
Picchi. O assistente de produção seria o novato André Klotzel, que anos mais
tarde dirigiria o premiado A Marvada Carne. Da equipe de Mojica, apenas
Marcelo Motta foi aproveitado, como assistente de direção. Adriano Stuart
(filho do ator Walter Stuart) trabalhou como diretor-assistente, além de atuar
no filme. Ele acabaria recebendo crédito como roteirista, o que deixou
Lucchetti extremamente magoado. Stuart era o homem de confiança de Massaini e
ficou responsável por garantir um mínimo de ordem no set de filmagens. Massaini
respeitava Mojica, mas temia que ele cometesse algumas das barbaridades de
filmes passados, como obrigar os atores a mexer com cobras e aranhas
caranguejeiras.
Nas primeiras cenas de Exorcismo Negro,
Mojica aparece recebendo a imprensa para falar de seu recente sucesso na
Europa. Ele revela estar sofrendo um bloqueio criativo e diz que aceitou o
convite de um amigo, Álvaro (Walter Stuart), para passar o Natal em sua casa
der campo, onde pretende relaxar e pensar em seu próximo filme.
Os fãs de Mojica certamente estranharam ao vê-lo
interpretando a si próprio, com ares de intelectual. Na casa de campo, Mojica e
Álvaro jogam xadrez, fumam cachimbos e discutem temas como parapsicologia e as
obras de Conan Doyle (um dos autores prediletos de Lucchetti).
Mojica logo percebe que alguma coisa não está certa
na casa: cadeiras andam sozinhas pelos corredores, tridentes aparecem no
espelho do quarto e livros viam das estantes, como que impulsionados por uma
força invisível. Logo depois, o cachorrinho da família aparece morto no jardim.
A coisa fica ainda mais esquisita quando a família de Álvaro começa a ficar
possuída por espíritos malignos. A primeira vítima é seu pai, Júlio (Jofre
Soares). Ele sofre uma espécie de delírio, durante o qual ataca Mojica. Depois,
é a vez de Wilma (Ariane Arantes), filha mais velha de Álvaro.
O que Mojica não sabe é que a mulher de Álvaro,
Lúcia (Georgia Gomide), havia feito, vinte anos antes, um pacto com uma bruxa
(Wanda Kosmo) para ter uma filha. A bruxa deu à Lúcia uma filha – Wilma – com a
promessa de que a criança, depois de adulta, se casaria com Eugênio (Adriano
Stuart), que na verdade é filho de Satã. Quando Wilma anuncia seu casamento com
Carlos (Marcelo Picchi), a bruxa se revolta e convoca Zé do Caixão para cobrar
a dívida e consumar o matrimônio infernal. Zé celebra uma missa negra para
ratificar a união de Wilma e Eugênio, e ordena o sacrifício da filha mais nova
de Álvaro, a pequena Betinha (interpretada por Merisol, filha de Mojica). Mas
Mojica descobre os planos de Zé do Caixão e tenta evitar o casamento. Criador e
criatura acabam finalmente se encontrando:
- Fiz de tudo para evitar esse encontro – diz Zé do
Caixão.
Mojica acha que está sofrendo uma alucinação. Zé
pergunta:
- Por acaso não acredita no que faz?
Depois, para provar seus poderes, Zé manda seus
assistentes iniciarem uma bárbara sessão de tortura, arrancando línguas de
penitentes, decepando dedos e chicoteando mulheres indefesas. Mojica se borra
de medo. Segurando um crucifixo, ele pede ajuda a Deus:
- Eu acredito em Deus Pai! Em nome do nosso Senhor
Jesus Cristo, ordeno que abandonem esses corpos!
Comparado aos outros filmes de Mojica, Exorcismo
Negro teve uma filmagem tranquila. Um dos poucos problemas enfrentados pela
equipe foi uma alergia braba que atacou os olhos do ator Jofre Soares, causada
pelas lentes de contato vermelhas que ele teve de usar na cena em que estava
possuído. Depois que Jofre colocou as lentes, não conseguiu mais tirá-las. Seu
rosto começou a inchar e a equipe teve que levá-lo às pressas para um hospital.
O episódio mais grave, no entanto, foi um acidente
de trânsito em que provocou ferimentos em Mojica e em três outros membros de
sua equipe. Na segunda-feira, 25 de junho, Mojica, o assistente Marcello Motta,
o guarda-costas Satã e o motorista João Rosa foram a um restaurante japonês na
Liberdade, depois da filmagem. Tomaram saquê à vontade e saíram do lugar num
porre de dar pena. João estava tão chumbado, que caiu numa escadaria e torceu o
braço. Decidiram levá-lo para o pronto-socorro. Como Mojica não sabia dirigir e
Motta estava num estado deplorável, Satã – que nem carteira de habilitação
tinha – assumiu o volante da kombi de João. Três quarteirões depois, ele
avançou um sinal na rua Tamandaré, na Liberdade e bateu de frente com um
Karmann-Ghia que vinha em sentido contrário. A kombi capotou duas vezes e foi
parar em cima da calçada. Por sorte, ninguém se machucou seriamente. Uma
ambulância veio e levou todo mundo. Mojica, com medo de que a história acabasse
nos jornais, pirulitou-se da chegada da polícia, enquanto João, Satã e Marcelo
Motta tiveram de passar a noite inteira no Distrito, dando explicações para o
delegado.
Exorcismo Negro ficou pronto em setembro, dentro do prazo previsto. Mas a Censura atrasou
a liberação e Massaini não conseguiu lançá-lo junto com O Exorcista,
como pretendia. Mesmo assim, Mojica decidiu aproveitar a onda em cima do filme
americano para obter publicidade para sua fita.
O lançamento de O Exorcista estava sendo
aguardado como o grande acontecimento cinematográfico do ano no Brasil. No dia
da estreia do filme, 11 de novembro de 1974, as filas começaram a se formar
quatro horas antes da primeira sessão. No Rio, às nove da manhã, já havia uma
multidão em frente ao Cine Roxy, em Copacabana. Houve empurra-empurra e as
vidraças do cinema acabaram estilhaçadas, ferindo duas pessoas. Em São Paulo, a
polícia teve de ser chamada para controlar as filas.
Mojica não poderia perder uma chance dessas: no fim
de semana de estreia de O Exorcista, ele fantasiou-se de Zé do Caixão e
improvisou um comício na porta do Cinema Ipiranga, no centro de São Paulo.
Empunhando cartazes de Exorcismo Negro e cercado por alguns de seus
assistentes, Zé conclamava o povo a esquecer o exorcista gringo e prestigiar o
similar nacional:
- Por que vocês estão interessados nesse demônio
americano? – gritava. – Lá nos Estados Unidos ninguém sabe nada do diabo! Quem
sabe de diabo é brasileiro! O diabo é nosso!
O slogan acabou colando. Os jornais adoraram a
história e mandaram repórteres cobrir o protesto. A cena era extraordinária: Zé
do Caixão correndo a quilométrica fila do cinema, implorando aos espectadores
para que desistissem de ver o filme americano:
- Esse demônio americano não é de nada! Diabo por
diabo, o brasileiro é muito melhor! Vocês nunca prestigiaram os meus filmes,
mas pagam para ver o diabo gringo! É o fim do mundo!
Mojica deu entrevista aos jornais malhando O
Exorcista: “Vê se pode, um diabo que faz levitação, arrasta móveis, racha
teto de cimento armado, e depois não consegue se libertar de duas correiazinhas
de couro? Onde já se viu isso?”. Depois, explicou as vantagens do diabo
nacional: “O diabo brasileiro só entra num lugar para cometer uma série de
maldades, tentando conseguir mais gente para seu lado. Já o estrangeiro, mata
sua vítima sem nenhum objetivo. O nosso visa o espírito; o estrangeiro a
matéria”.
O protesto rendeu dezenas de reportagens sobre Exorcismo
Negro, mas não parece prejudicado a bilheteria de O Exorcista. Numa
lista publicada pela Embrafilme em 1984, O Exorcista apareceria como o
quinto filme mais assistido no Brasil, com 8 milhões de espectadores, atrás
apenas de Tubarão (13 milhões), Dona Flor e Seus Dois Maridos
(10,7 milhões), Inferno na Torre (10,3 milhões) e E.T. – O
Extraterreste (8,1 milhões).
Exorcismo Negro estreou no dia 23 de dezembro, em doze cinemas de São Paulo. A produção
“sofisticada” do filme confundiu os críticos. Se antes eles malhavam o primitivismo
das fitas de Mojica, agora reclamavam que Zé do Caixão estava refinado demais. No
Jornal da Tarde, Luciano Ramos escreveu:
Tudo indica que o diretor de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma busca o
refinamento. Acabou-se o charme dos cenários de papelão e graça do barbudo de
capa preta, saltitando entre sepulturas de um cemitério do interior. Agora
Mojica cuida mais da linguagem cinematográfica e contrata atores profissionais
(...) Moderadíssimo, quase não mostra mulheres nuas com aranhas e cobras.
Leon Cakoff, escrevendo no Diário da Noite,
também reclamou da sofisticação do filme:
O requinte primitivo que envolvia o personagem Zé do
Caixão, criado por José Mojica Marins, acabou por enquadrar-se às exigências de
uma produção Cinedistri (empresa
de Massaini). Tem até um solar de fachada quase igual aos castelos medievais
presentes na maioria dos filmes de horror europeus. Para o ator, o seu
personagem é que se internacionaliza. Para o espectador mais atento, novos
sintomas da aculturação que já faz algum tempo vem corroendo aspectos
relevantes da cultura nacional.
Apesar das críticas mornas, o filme estava atraindo
um bom público, e acabou ficando três semanas em exibição no Art-Palácio. Para
atrair mais atenção, Mojica promoveu um coquetel de lançamento dentro do
cemitério da Consolação, com a presença de toda a imprensa paulistana. Em
seguida, organizou uma de suas jogadas promocionais mais astutas e ambiciosas:
mandou que seus alunos, fingindo-se de espectadores, simulassem transes
hipnóticos durante as sessões de Exorcismo Negro. Um de seus assistentes
ligou para os jornais, identificando-se como gerente de um cinema e avisando
que um “fenômeno paranormal nunca visto” estava acontecendo durante as sessões
do filme. Os jornais mandaram repórteres para conferir a história. Os alunos de
Mojica, quando percebiam a presença de jornalistas, começavam a gritar e a
pular nas poltronas, como se estivessem possuídos. Outros fingiam desmaios e
ataques histéricos. A performance deu tão certo que Mojica decidiu mandar um
ônibus cheio de alunos para Curitiba, na semana de lançamento do filme na
cidade. Vários acabaram no xadrez, depois que o gerente chamou a polícia para
reclamar da bagunça.
Quando Exorcismo Negro estreou no Rio de
Janeiro, em 27 de janeiro de 1975, os críticos cariocas reagiram da mesma forma
que seus colegas paulistas. Onézio Paiva, do Última Hora, acertou na
mosca:
Os cuidados da produção dispensados por Aníbal
Massaini Neto não se revelaram tão eficientes quanto era de se esperar. E por
um motivo bem simples: primitivo, rústico e intuitivo, Mojica parece mais à
vontade e criativo quando trabalha em condições precárias – principalmente se
não dispõe de recursos para realizar sequer uma cenografia de médio nível
artístico, pois, paradoxoalmente que seja, ele respira melhor num meio de
escassez, de pobreza e de ignorância – elementos que lhe permitem traduzir,
conscientemente ou não, certos aspectos da miséria brasileira. O ambiente
limpo, falsamente tranquilo e reluzente da alta classe média não é,
positivamente, seu terreno ideal.
O crítico de O Globo, Fernando Ferreira,
gostou do filme, embora concordasse que Mojica não parecia muito à vontade
interpretando um intelectual:
Esta é a primeira fita de José Mojica Marins na qual
o argumentista-diretor-produtor-ator teve a seu alcance condições amplamente
favoráveis ao nível da produção. Sob esse aspecto, é o mais satisfatório dos
filmes desse realizador ao mesmo tempo supervalorizado e incompreendido (...)
Resta saber até que ponto a espontaneidade da
inventiva de José Mojica Marins, patente nos seus filmes mais expressivos, como
Á Meia-Noite Levarei Sua Alma e O Estranho
Mundo de Zé do Caixão, não se acanhou neste esquema de cinema desenvolvido.
Parece claro que isso se deu. Mojica Marins dissertando eruditamente sobre
parapsicologia, sobre Conan Doyle e Sherlock Holmes, sua criatura, absorvido em
leituras e apontamentos, jogando xadrez em sala grã-fina e bebendo do melhor
Passport, enquanto fenômenos de possessão vão acontecendo na casa onde
descansa, são coisas que soam falso e inconsistente (...)
A melhor sequência do filme é a missa negra oficiada
por Zé, finalmente em cena depois de muitas promessas. Aí Mojica Marins vai ao
encontro do melhor de suas possibilidades: a história em quadrinhos, o grand
Guignol, a efervescência temática de mitos populares, o tradicional filme de
horror e a delirante imaginação do realizador brotam, afinal, incontidos, num
show de circo e mafuá – aqui com certo requinte de luxo – que tem realmente
algo a acrescentar à singular carreira do cineasta.
Exorcismo Negro ficou em exibição na cidade de São Paulo por quase dois meses, depois
foi lançado no interior do Estado e em outras capitais. Em março, Mojica estava
promovendo o lançamento do filme em Belo Horizonte, quando ocorreu um evento
bizarro que lhe trouxe ainda mais publicidade. Um grupo de trinta alunos estava
na cidade de Americana, noroeste de São Paulo, rodando um filme de terror em
Super-8 chamado Materialização. A fita seria uma espécie e “prova final”
do curso de cinema de Mojica (ele encorajava seus discípulos a fazer seus
próprios filmes, para ganhar experiência).
Na madrugada de segunda-feira, 22 de março, o padre
João Rodrigues foi acordado em sua casa por alguns vizinhos, que diziam ter
visto “moças nuas andando pelo cemitério da cidade”. Intrigado, ele foi ao
local e percebeu que havia uma movimentação intensa dentro do cemitério. O
sacerdote entrou no cemitério e ficou estarrecido com o que viu: rapazes
seminus corriam pelas catacumbas; outros cansavam e dançavam, enquanto moças de
calcinha e sutiã rebolavam entre as sepulturas. Não se conteve:
- Isso é uma profanação de um lugar sagrado! Saiam
daqui, seus miseráveis!
Um dos alunos tentou argumentar, dizendo que também
era cristão, mas que no momento estava apenas trabalhando.
- Você chama isso de trabalho? Até os pagãos do
Império Romano respeitavam as catacumbas! Ordeno que vocês vão embora!
Quando percebeu que suas ordens não seriam
cumpridas, o padre apelou para o pessoal que observava a cena de cima do muro:
- E vocês, filhos de Deus? Vão ficar aí parados
enquanto esses maconheiros pisam nos seus semelhantes? Vamos acabar com isso!
Quem for cristão que me acompanhe!
A multidão não resistiu ao apelo e invadiu o
cemitério, botando os atores para correr. Os cristãos de Americana destruíram
todo o equipamento e surraram uma dúzia de alunos, que correram para se abrigar
na casa do zelador do cemitério. A massa enfurecida começou a apedrejar o
prédio e tentou arrombar a porta. A polícia chegou poucos minutos depois e
evitou o linchamento. Mesmo assim, dois alunos – inclusive uma moça – levaram
pedradas e tiveram que ser hospitalizados.
Na delegacia, o padre não se conformava: “Quando vi
aqueles rapazes de cor e enormes cabeleiras correndo sobre as sepulturas, não
resisti!”. Mojica voltou correndo a São Paulo e deu várias entrevistas
lamentando o incidente e reclamando dos “enormes prejuízos” que sofrera. Duas
semanas depois foi a Americana, onde reuniu a imprensa local e agradeceu ao
povo americanense pela “recepção hospitaleira”. A cidade retribuiu com um
processo por violação e profanação do cemitério, que acabou não dando em nada.
Com tanta publicidade gratuita, Exorcismo Negro
rendeu um bom dinheiro. Mojica saiu da pindaíba absoluta em que se encontrava e
alugou um pequeno sobrado de dois quartos na Moóca, para onde foram sua mãe e
Nilce. Depois de passar quatro anos dormindo no sofá da casa de Carmen, Nilce
finalmente teria um quarto só seu.
Apesar de morarem juntas por tanto tempo, Nilce e
Carmen não se davam. Carmen ainda a via como uma intrusa, e a acusava de ter
atrapalhado o casamento do filho, o que era uma tremenda injustiça, uma vez que
Mojica, quando conheceu Nilce, já nem morava mais com a esposa Rosita, mas com
a amante, Maria.
Nilce sofria o diabo com as outras mulheres de
Mojica: durante as filmagens de Exorcismo Negro, Maria foi diversas
vezes ao estúdio acompanhando a filha Merisol, que atuava no filme. Chegou a
ameaçar Nilce de morte caso descobrisse que ela tinha alguma coisa com Mojica.
Poucos dias depois, foi Rosita quem invadiu o estúdio e atacou Nilce com um cinto.
O irônico é que quem trabalhava para sustentar Rosita e Maria era, no final das
contas, a própria Nilce. Ela não tinha salário, férias ou hora de dormir;
trabalhava feito um cavalo e dependia de Mojica para tudo. Quando confrontada
por Maria ou Rosita, Nilce negava o romance com Mojica, mas na verdade os dois
estavam cada vez mais ligados. O relacionamento de Mojica e Maria havia
esfriado. E Rosita nem entrava mais na equação: Mojica só ia à sua casa para
visitar o filho.
(...)
Nilce sabia que tinha condições de ganhar a vida
montando filmes ou comerciais de TV. Afinal, já era conhecida nos meios de
cinema como uma montadora de talento. Há dez anos vinha observando atentamente
o trabalho de vários montadores e aprendendo os segredos da profissão, tendo
inclusive ajudado Luiz Elias e Roberto Leme na montagem de vários filmes.
Mojica se desesperou. Implorou para que ela não o abandonasse e prometeu
torná-la sócia em uma nova produtora. Semanas depois, fundou a Produções
Cinematográficas Zé do Caixão, e anunciou a filmagem de A Estranha
Hospedaria dos Prazeres.
Como sempre fazia às vésperas de filmar, Mojica
tratou de armar algum evento para atrair a atenção da imprensa. Seu objetivo
era divulgar seu mais novo projeto e, quem sabe, conseguir investidores para o
filme. A primeira ideia que lhe veio à cabeça foi organizar uma passeata em
defesa do cinema nacional. Mudou de ideia assim que viu a manchete do jornal Notícias
Populares de domingo, 11 de maio de 1975: “Nasceu o Diabo em São Paulo”.
No dia anterior, o repórter policial Waldemar de
Paula estava de plantão na redação do NP quando soube de um boato que se
espalhava pela cidade. Dizia-se que um bebê com pelo e chifres havia nascido em
um hospital da periferia. Waldemar ligou para algumas maternidades, mas não
conseguiu confirmar a história. Mesmo assim, escreveu um artigo, no qual
batizou a criança de “Bebê-Diabo”. Na segunda-feira de manhã, o editor Ebrahim
Ramadan e o secretário de redação, José Luiz Proença, receberam um telefonema
do responsável pela distribuição do jornal, informando que a edição havia
esgotado:
- Todo mundo está querendo saber mais sobre esse
Bebê-Diabo!
Não se falava em outra coisa na cidade: em pontos de
ônibus, botequins, escolas, salões de cabelereiros, escritórios, o assunto do
dia era o Bebê-Diabo. O telefone do jornal não parou de tocar. Eram leitores
jurando de pés juntos ter visto o tal filho do capeta. Um repórter do NP
descobriu um hospital em São Bernardo do Campo, onde os médicos e funcionários
garantiam ter presenciado o nascimento de uma criança deformada e peluda. Só
que ninguém sabia onde estava a criança. No dia seguinte, o jornal alardeou:
“Bebê-Diabo Desaparece!”.
Aí a coisa pegou fogo: leitores começaram a ir ao
jornal em bandos, contando histórias mais mirabolantes. Uns diziam ter visto o
bebê andando por Osasco; outros juravam terem sido perseguidos pela criatura em
São Bernardo do Campo. Um desenhista do jornal fez um retrato falado do
demônio, baseado na descrição de um leitor. Às dez da manhã, a edição de
terça-feira já estava esgotada. Naquela mesma tarde, chegaram à redação os
resultados da pesquisa de venda nas 2 mil bancas de São Paulo. O encalhe da
edição de domingo havia sido de exatos oito exemplares, e estes só não foram
vendidos porque estavam destroçados e ilegíveis pelo excesso de manuseio. A
chefia do jornal imediatamente aumentou a tiragem de 70 mil para 150 mil. O
sucesso foi tão grande, que o Notícias Populares deu nada menos de 28
reportagens consecutivas sobre o Bebê-Diabo.
Mojica, que dois anos antes já havia exorcizado o
Vampiro de Osasco para o NP, telefonou para o editor Ebrahim Ramadan pedindo
para entrar na cobertura do Bebê-Diabo. Depois inventou uma tremenda cascata,
dizendo que havia recebido informações de que o tal filho do demo estaria em
Salvador.
- Vou mandar meus dois assistentes mais corajosos,
Satã e Marcello Motta, para a Bahia, atrás do Bebê-Diabo!
O jornal deu ampla cobertura à caçada de Mojica: uma
chamada de primeira página dizia: “Zé do Caixão vai caçar Bebê-Diabo no
Nordeste”. Dois dias depois, outra reportagem informava que os emissários de
Mojica haviam, de fato, feito contato com o pequeno Lucífer. Segundo o artigo,
Satã e Marcelo Motta teriam encontrado o capetinha na cidade de Qui-Papa, no
interior da Bahia. Motta declarou ao jornal: “Existe uma lenda no Nordeste
segundo a qual, há muitos anos, quando Satanás andava por lá carregando seu
filho – o Bebê-Diabo – no colo, deixou-o no meio do sertão para procurar água.
O demônio largou seu filho lá, por vários dias, sem água. Quando voltou, o bebê
havia encontrado água por conta própria e, apontando para o solo, falou ao
Papai-Diabo, indicando a água: ‘Qui-papa, qui-papa...’. Daí batizaram a cidade
com esse nome!”.
A cara-de-pau de Mojica e sua trupe era
impressionante: Satã e Marcelo Motta não tiveram nem a preocupação de se
esconder por um dia ou dois para simular a tal viagem à Bahia; Satã passou
aqueles dias enchendo a cara num bar da Moóca, enquanto Motta havia começado a
dirigir A Estranha Hospedaria dos Prazeres.
Mojica deixou Motta dirigir o filme. Estava exausto
de tanto trabalho e ainda não havia resolvido sua situação com Nilce. Além do
mais, Motta, que o acompanhava desde 1969, há muito vinha pedindo a chance de
dirigir. Como não conseguiu nenhum produtor disposto a bancar a produção,
Mojica recorreu ao velho sistema de cotas para fazer A Estranha Hospedaria
dos Prazeres. Mais de cem alunos se cotizaram e bancara o filme.
A equipe foi formada basicamente por alunos. Os
únicos profissionais seriam Mojica, Nilce e o fotógrafo Giorgio Attili. Todos
os outros eram novatos: Marcelo Motta (diretor), Jorge Perez Ortega (diretor de
produção), Giulio Aurichio e Airton Lopes (assistentes de produção), José
Geraldo (assistente de câmera), Rafael Bastos da Silva (eletricista-chefe),
Luiz Antônio de Oliveira (eletricista), Ivo Casimiro da Silva (contra-regra),
Creusa Maria (maquiadora), Laurentin Antonescu (técnico em efeitos especiais) e
Ronaldo Rocha (continuísta).
A história do filme se passa numa única noite de
tempestade, em uma misteriosa hospedaria. Mojica – usando um engraçado
chapéu-coco – interpreta o gerente do estabelecimento. Vários tipos começam a
chegar – um casal de noivos, um grupo de industriais, uma gangue de motoqueiros
hippies, uma adúltera com seu amante – e cada um vai para seu quarto. Durante a
noite acontecem brigas, crimes, orgias e toda sorte de acidentes, muitos deles
apenas imaginados pelos hóspedes. Quando amanhece o dia, descobre-se que a
hospedaria na verdade é um cemitério, e que o personagem de Mojica é a própria
morte.
A pobreza da produção é evidente: para economizar,
Mojica usou diálogos e músicas de outros filmes. Numa cena em que os
motoqueiros hippies fazem um bacanal na hospedaria, ele usou o mantra “Todo
mundo nu, oba! Peladinho, peladão, oba!”, gravado cinco anos antes para Finis
Hominis. A inexperiência dos alunos obrigou-o a refazer diversas cenas por
causa de gafes banais como erros de continuidade e imagens fora de foco.
Os efeitos especiais também deram muito trabalho:
havia uma cena em que o personagem de Mojica matava alguns ratinhos brancos
apenas com a força de seu olhar. O eletricista-chefe Rafael Bastos da Silva
montou um chiqueirinho de areia em cima de uma placa de metal ligada a fios
elétricos, para eletrocutar os ratos, Luiz Antônio de Oliveira, o Luizinho,
espécie de faz-tudo da equipe, ficou no interruptor, pronto para dar a descarga
fatal. Ele deveria esperar que Mojica olhasse para os ratinhos e só então ligar
a corrente elétrica. Mas estava tão nervoso que, assim que gritaram “câmera”
ele ligou a tomada e os ratos caíram duros.
Luizinho era mais um desses abnegados que largou
tudo para trabalhar com Mojica. Ele ganhava a vida como taxista em São Paulo,
quando resolveu tentar a sorte no cinema. Acabou trabalhando como técnico e
fotógrafo em uma dúzia de filmes. Era tão pobre, que passou dois anos morando
no estúdio e dormindo dentro do caixão de Mojica. Em noites frias, botava um
pauzinho segurando a tampa do esquife, para poder respirar.
A filmagem de A Estranha Hospedaria dos Prazeres
terminou em agosto. Faltou dinheiro para completar a dublagem, o que forçou
Mojica a vender uma parte do filme para Alfredo Cohen, dono da distribuidora
Brasil Cinematográfica. O dinheiro de Cohen foi usado também para refilmar
algumas cenas que haviam sido prejudicadas pela inexperiência do diretor
Marcello Motta.
Em dezembro, estava marcada a festa de formatura de
uma turma de alunos de Mojica. Todo ano ele organizava essas festas, nas quais
distribuía diplomas aos melhores atores de sua classe e faturava um troco com
bingos e rifas. Sua atuação financeira até que não era das piores: ainda tinha
parte do salário de Exorcismo Negro e recebia todo mês seu 15% da
bilheteria do filme, que continuava em cartaz e cidades do interior. Ainda
tinha A Estranha Hospedaria dos Prazeres no forno, com lançamento
previsto para o início de 1976.
Foi aí que Mário Lima veio com outra de suas ideias
brilhantes (a primeira foi a compra da perua C-14): ele sugeriu fazer a
formatura na Viola de Ouro, outro gigantesco salão no Ipiranga, e convenceu
Mojica a investir suas economias na compra de bebidas e salgadinhos para vender
na festa. Mário contratou trinta garçons, comprou toalhas de renda branca e
alugou jogos de talheres e pratos finíssimos. Depois, foi a um armazém e alugou
comida para abastecer um exército: 100 quilos de queijo provolone, 50 quilos de
azeitonas, 30 latas de picles, além de jarras de tremoços e batatinhas em
conserva. Trouxa ainda caixas e mais caixas de champanhe e dezenas de
engradados de cerveja e refrigerante.
A festa foi um sucesso de público: mais de duas mil
pessoas compareceram. O problema é que ninguém tinha dinheiro para o jantar. Só
tomaram cerveja, e bem pouca. O champanhe ninguém quis. No fim da noite,
sobraram 92 quilos de provolone e 45 quilos de azeitonas. Era tanta comida que
Nilce teve de pedir a vários bares da região para guardas as jarras de picles
em suas geladeiras. Os prejuízos foram imensos: Mojica foi obrigado a procurar
o produtor Aníbal Massaini e vender seus 15% de Exorcismo Negro para
pagar o rombo. Ficou novamente na sarjeta. Passou os meses seguintes comendo
queijo provolone com azeitona.
Publicado
originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o
cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.
Um comentário:
Uma vida ou uma aventura trágica/cômica?
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