Por Luiz Carlos Ramos
Tenho certeza de que meus olhos brilharam. Meu estilo
otimista me dizia que, com paciência e determinação, eu seria aprovado nos
testes, mas sem subestimar as barreiras. Como seria aquele mês? Eu teria de
levantar cedo, ir até o “Jornal da Tarde” para pegar a pauta do tema de minha
reportagem do dia, ir ao local estabelecido, levantar todas as informações, e
deixar para escrever o texto à noite, no próprio “JT”. Tomar um lanche da hora
do almoço, correr para a “Última Hora” e cuidar do habitual trabalho de cobrir
os clubes pelo telefone até às 18 horas, escondendo do Paes Leme minha
possibilidade de mudar de emprego. Em seguida, voltar para o novo jornal.
Um jornal? Não. Na realidade, dois: a mesma equipe de
jornalistas que produzia a seção de Esportes do “Jornal da Tarde” era
responsável pelo semanal “Edição de Esportes de O Estado de S. Paulo”,
apelidada de “Estadinho”, lançada em setembro de 1964 para circular aos
domingos à noite, com cobertura dos jogos do fim de semana. Era uma alternativa
moderna em relação à tradicional “A Gazeta Esportiva”, com a vantagem de evitar
submissão aos dirigentes de futebol.
Mino Carta, primeiro editor-chefe do “Estadinho”, fez
daquele pequeno laboratório para formar e treinar a equipe que ele comandaria
no lançamento do “JT”, em 4 de janeiro de 1966. Mino, extrovertido, arrojado e
vaidoso, demitiu-se em 1968 para lançar a revista semanal “Veja”, levando
vários integrantes do time. E Murilo Felisberto, discreto, mas genial, assumiu
o comando do “JT”.
Portanto, por algum tempo, naquele final de 1966, eu
estaria a serviço da “UH”, do “JT” e do semanário – este já nas mãos de outro
grande jornalista, Sebastião Gomes Pinto, o Tão. Fiquei conhecendo o próprio
Tão, os excelentes repórteres José Maria de Aquino, Vital Battaglia, Tim
Teixeira, Luciano Ornelas, Darci Higobassi e outros; os redatores João Werneck,
Otoniel dos Santos Pereira e José Carlos Abbate, e os colunistas Mauro Pinheiro
e Cláudio Carsughi. Eles seriam meus companheiros somente após a esperada
aprovação nos testes.
Da primeira reportagem, a gente jamais esquece. Minha
tarefa na segunda-feira, 18 de outubro, foi entrevistar o goleiro Heitor, do
Corinthians, acusado de falhar em três dos gols da derrota por 4 a 3 diante do
Noroeste, em pleno Parque São Jorge. A torcida corintiana estava revoltada com
ele. Seu futuro no clube ficou em risco. Cheguei bem cedo à Redação do “JT”, li
a pauta, peguei o endereço do Heitor, um apartamento no Tatuapé, perto do
clube. Ao contrário das limitações impostas pela “Última Hora” em crise, o “Jornal
da Tarde” dispunha de todos os recursos para o trabalho externo dos repórteres.
Passei pelo Departamento de Fotografia, ao lado da Redação, e me apresentei ao
experiente Arnaldo Fiaschi, escalado para ser meu parceiro na missão de
estreia. Boa gente, Arnaldo me contou que havia trabalhado na “Gazeta
Esportiva” e que cobriu a Copa de 1962, no Chile. Descemos até a garagem do
prédio, entramos numa van e seguimos para a Zona Leste.
Encontramos um Heitor abatido, ao lado da esposa, Dilma,
e tendo aos braços o filho de apenas 7 meses. Explicou que no sábado, dia 16,
ele amanheceu com forte gripe, mas aceitou entrar em capo, à tarde. Admitiu ter
falhado em dois gols no Noroeste, principalmente no decisivo, de Lourival, aos
44 minutos do segundo tempo. E contou sua história no futebol.
Em
1963, o mineiro Heitor Amorim Perroca, era do São Cristóvão, do Rio de Janeiro,
ao ser contratado pelo Corinthians, dois meses depois de ter vestido a camisa
da seleção brasileira nas vitórias contra o Uruguai (3 a 1) e o Chile (3 a 0),
pelo Campeonato Pan-Americano. No clube alvinegro, onde Cabeção e Aldo se
revezavam, Heitor estreou em 14 de julho, em Bauru, com derrota por 2 a 1
contra o mesmo Noroeste de seu drama. Teve boa atuação e virou titular. Em
1964, ele foi aplaudido como herói, ao defender um pênalti cobrado por Pelé,
garantindo o 1 a 1 contra o Santos, líder, no Pacaembu. Foi em 1º de outubro,
jogo remarcado porque havia sido interrompido, em 20 de setembro, aos 6 minutos
do primeiro tempo, quando desabou uma parte da arquibancada da Vila Belmiro. No
tumulto, o alambrado foi derrubado e o campo, invadido. Quase 200 pessoas
ficaram feridas.
“E
agora?”, perguntei a Heitor, que admitiu: “A vida de goleiro é a constante
oscilação entre herói e vilão. Espero ter chance de reagir”.
A
história era mesmo boa. Só faltava botar no papel. Troquei ideias com o
fotógrafo Arnaldo, guardei as anotações, e voltei ao “JT”, à noite, para fazer
o texto. “Pode escrever tudo o que você tem”, disse Hamiltinho. “Na hora de
editar, a gente pode enxugar”. Fiquei perto de três horas teclando a máquina
Olivetti, e entreguei sete laudas aos editores. “Amanhã a gente conversa”,
avisou Pompeu. Me despedi.
No dia
seguinte, abri as páginas do “JT” e vi, com orgulho, minha reportagem. Não
estava assinada e, mesmo tendo sido resumida pelos redatores, ocupou página
inteira do jornal, com uma bela foto tirada pelo Arnaldo Fiaschi.
Durante
a semana, continuei lutando para conseguir o emprego, enquanto Heitor ia
perdendo o dele. Jamais voltou a jogar pelo Corinthians: seu contrato foi
rescindido. Em três anos, disputou 115 jogos, sofreu 137 gols. Depois, atuou no
Juventus, de São Paulo, e em outros clubes. O emprego do técnico Filpo Nuñez
também não durou muito. O clube havia perdido a liderança do campeonato para o
Palmeiras na derrota para o Noroeste, foi mal em sete outros jogos, e Filpo
acabou sendo demitido.
Personagens
sobem. E caem. Ás vezes, mergulham no esquecimento. Em 15 de agosto de 2018,
uma pequena rota num jornal chamou minha atenção: “Heitor, goleiro do
Corinthians nos anos 1960, faleceu ontem, aos 77 anos, de insuficiência
cardíaca, em Ubatuba-SP. Após deixar o futebol, foi pastor do movimento
evangélico Testemunhas de Jeová. Deixa esposa e três filhos”.
Faço
uma pausa neste texto, para lamentar, em silêncio. Silêncio e saudade.
Retirado
de: RAMOS, Luiz Carlos. Vida de Jornalista. São Paulo: A4 Ideias
Editora, 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário