sábado, 26 de março de 2016

A história da Boca paulista parte III: o fim

Por Alfredo Sternheim 


O começo do fim

Na década de 70, em alguns anos o Cinema da Boca respondeu por mais de 50% da produção brasileira. Uma demonstração cabal da força da iniciativa privada e que se fazia ouvir, tinha suas lideranças nas discussões oficiais sobre a condução do nosso cinema, a luta por melhores condições. É o que aconteceu, por exemplo, no 1º Congresso da Indústria Cinematográfica Brasileira, em outubro de 1972, no Rio de Janeiro. Na ocasião, foram discutidas amplas medidas para acirrar a evolução do nosso cinema. Produtores como Oswaldo Massaini e Alfredo Palácios levaram suas sugestões. O primeiro defendeu limites para a importação fácil e desenfreada das produções. O segundo, após apresentar um resumo das lutas realizadas até então pelo desenvolvimento do cinema nacional, enfatizou medidas para elevar a rentabilidade dos filmes em nosso mercado e algumas medidas favoráveis ao exibidor, como isenção de impostos para os cinemas que ocupassem espaços ociosos com aulas e divulgação de nossos filmes. “A técnica de recuperação do público, em todo o mundo, vem se fazendo com o abandono de salas de grande lotação e a multiplicação de salas menores”, disse na ocasião. Hoje, está provado que ele estava com a razão.

Porém, nem ele e nem outros cineastas, técnicos ou artistas da Boca que lá estavam vislumbraram algum perigo na Embrafilme, que já estava no terceiro ano de sua existência. Ela foi criada sem consultas prévias à classe cinematográfica em setembro de 1969, através de um surpreendente decreto da junta militar que presidia o Brasil em substituição ao General Costa e Silva, que havia sofrido um derrame. O objetivo inicial parecia ingênuo e nobre: estimular a exibição de nossos filmes no Exterior, comercialmente ou em certames e festivais. O resto – ou seja, a regulamentação de nosso mercado, os incentivos para a nossa indústria – continuaria sendo gerenciado pelo INC, o Instituto Nacional de Cinema.

Só que, em pouco tempo, a conduta da Embrafilme foi mudando. A empresa, com personalidade jurídica de direito privado, mas vinculada ao Ministério de Educação e Cultura (que na época tinha como titular o coronel Jarbas Passarinho), gradativamente adquiriu mais força, tornou-se uma concorrente da iniciativa privada. Ao mesmo tempo, o INC ia sendo esvaziado, perdia as suas atribuições. Na área da produção, o favor fiscal que permitia às distribuidoras e importadoras co-produzirem filmes brasileiros por suas escolhas foi objeto de alteração. A partir de uma lei, passou-se a exigir que os depósitos nesse sentido fossem realizados em nome da Embrafilme, que teria, daí em diante, autoridade para autorizar ou não a co-produção. Nesse clima, ficou patente, como registra a imprensa da época, que o cinema feito no Rio de Janeiro era bem mais favorecido que o de São Paulo. Surgiram até protestos oficiais como os do Sindicato da Indústria Cinematográfica de São Paulo, presidido então por Alfredo Palácios.

Quando a empresa passou a atuar como distribuidora, ela se diferenciou das demais, dando generosos avanços sobre a receita. Dessa maneira passou a atrair os produtores. Consequentemente, sem poder competir com esses fartos avanços, as distribuidoras independentes, que trabalhavam exclusivamente com filmes nacionais, foram sendo esvaziadas. “O poder da decisão, até então, estava em nossas mãos. Havia mais rapidez entre a concepção e o lançamento de um filme”, lembra o cineasta Fauzi Mansur, que se estabeleceu na Boca a partir de 1968. Nesse tempo todo ele logrou  construir sólida atividade não só de diretor, mas também de produtor e distribuidor. Nessa área, junto com mais dois sócios, criou a Alpha Filmes. “Mas a Embra não atrapalhou tanto, não. Isso porque nos foi possível fazer acordos com a empresa para muitos lançamentos”, acrescenta Fauzi. Já João Callegaro tem opinião oposta. “A Embrafilme atrapalhou todo o cinema nacional. Principalmente o de São Paulo. Corrupção passiva, clientelismo, panelinhas e até ideologias estapafúrdias condicionava a concessão dos financiamentos”.

O fato é que o cinema nacional da Boca tinha mais agilidade, não precisava depender do tráfico de influências e do mecenato oficial. No plano governamental, o maior apoio vinha apenas da reserva de mercado que era, de fato, cumprida. Apesar de colecionar muitos sucessos de bilheteria (alguns notáveis como Sinal Vermelho- As Fêmeas, Anjo Loiro, A Superfêmea, O Homem de Itu, A Noite das Taras, Excitação, Mulher Objeto), as adversidades se tornavam mais intensas.

O sexo explícito

Por volta de 1980 ninguém poderia imaginar que um famoso filme japonês seria o estopim para a mudança drástica que ocorreu com o cinema da Boca. O lançamento comercial, por força de um mandato judicial, de O Império dos Sentidos, colocou sexo explícito em nossas telas. É verdade que o filme de Nagisa Oshima vinha precedido de prêmios e elogios do exterior. Mas o público lotava os cinemas menos por interesse artístico e mais para apreciar as genitálias das personagens centrais em plena atividade, de acordo com a trama.

“O frágil equilíbrio foi rompido com a potente entrada em cena do pornô explícito estrangeiro”, observou Nuno César Abreu no livro O Olhar Pornô. De fato, não demorou muito para alguém da Boca pensar em seguir a fórmula, mesmo de maneira canhestra. Foi o que fez Rafaelle Rossi, em 1981, com Coisas Eróticas. Formado por três episódios, ele inseriu cenas de sexo explícito em um ou outro que haviam sido feitos com essa proposta. O resultado foi uma notável bilheteria: mais de quatro milhões de ingressos vendidos nos dois primeiros meses. E para a exibição desse e de outros filmes que viriam a seguir, surgiu a indústria do mandado de segurança. Ou seja, como o pornô era proibido no Brasil (daí a Censura não poder liberar nenhum filme), um único advogado impetrava mandado de segurança, nos moldes daquele que garantiu o lançamento de O Império dos Sentidos. Os orçamentos até previam verba para o casuísmo jurídico, típico em um país como o nosso, onde existem leis contraditórias. Claro que esse advogado, parente de um político de São Paulo, ganhou farto dinheiro fácil.

O curioso é que essa mudança começou a aparecer justamente quando o Brasil lançava cerca de 100 filmes por ano. E, desses, mais de 50 eram da Boca, que ainda resistiu bravamente a esse novo tipo de cinema. Basta examinar a lista dos títulos de 1981, no livro Dicionário de Filmes Brasileiros, de Antônio Leão da Silva Neto: somente uns dois ou três enveredaram por essa seara. Foi nesse ano também que surgiram propostas eróticas mais qualificadas como O Olho Mágico do Amor, Palácio de Vênus e Mulher Objeto, por exemplo.

Em 1982 e 1983, muitos cineastas daquela região assinaram realizações sem nenhuma cena explícita, porém fazendo média nos títulos e nas próprias tramas com os anseios eróticos do público. Nessa linha estão produções como Amor, Estranho Amor que tinha Vera Fischer e Xuxa à frente do elenco, Tensão e Desejo, A Fêmea da Praia... Mas, salvo raras exceções, a resposta das bilheterias era menos expressiva do que antes. O público, agora acostumado com os pornôs, talvez se sentisse frustrado enganado pela ausência de detalhes dos pênis e das vaginas em plena atividade. Naturalmente que os exibidores perceberam essas mudanças e, embora a reserva de mercado continuasse efetivamente a existir, eles deixaram claro que dariam preferência aos filmes com sexo explícito. Foi o que aconteceu.

No final de 1983 e começo de 1984, a transformação tornou-se evidente. Êxitos como Bacanal de Colegiais, A Menina e o Cavalo e Sexo em Festa serviram para provar ao comércio cinematográfico que o Brasil podia fazer frente à desenfreada importação de pornôs estrangeiros. E em relação ao público, existia a vantagem: a língua portuguesa. O palavreado chulo em meio das fartas transas tornavam nossos filmes mais atraentes. A indústria da Boca sentiu-se, aparentemente, mais segura, podia se manter e manter os empregos que gerava. Era o começo de um caminho sem volta.

Foram muitos os cineastas da Boca que encararam fazer filmes com sexo explícito, mas só alguns assumiram, não se esconderam atrás de pseudônimos. Várias dessas realizações têm histórias, ambições cênicas. Como o futurista Gozo Alucinante, por exemplo, realizado perlo falecido Jean Garrett, com requintada fotografia de Carlos Reichenbach e cenografia do premiado Campello Neto. Mas esses e outros méritos eram ignorados pela mídia, pela imprensa especializada que, quando muito, simplesmente tratava com desprezo qualquer proposta nessa linha.

Muitos diretores apaixonados pelo cinema e dotados de cultura aderiram a esse filão porque, além de estarem marginalizados pela política oficial da Embrafilme, que então privilegiava mais os cariocas, acreditavam que essa fase seria passageira. Eles esperavam um nobre retorno para o nosso cinema, capaz de possibilitar mais diversidade. Vã esperança.

O Fim da Boca

O Cinema da Boca do Lixo começou a dar seus últimos suspiros na década de 1980. Para muitos, o declínio começou com a entrada do filme pornográfico. “A desgraça da Boca do Lixo não veio por um meio moralista, mas pela forma injusta como surgiram os chamados mandados de segurança, um autêntico mercado paralelo que perverteu todo o jogo de distribuição e exibição de filmes”, disse Carlos Reichenbach. “Eu tenho certeza que por trás da invasão do cinema pornográfico no Brasil tem os dedos das majors americanas da distribuição e exibição. Estive em países muito mais adiantados que o Brasil, sob o crivo da liberdade de expressão, como a Holanda e a Dinamarca; em todos eles, os filmes pornográficos eram confinados a guetos”. Reforçando a sua opinião, ele lembra que, por força desses mandatos, “os filmes pornográficos estrangeiros (e nacionais) invadiram todas as salas mais frequentadas pelo público C e D, aquele que sempre foi fiel ao cinema brasileiro. Estragaram os cinemas mais populares definitivamente, afastaram o público que sempre gostou dos nossos filmes e deformaram os centros urbanos de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte com sua insânia mercantilista. Pior, ajudaram a criar uma fama péssima para o cinema brasileiro, sem revelar jamais que a contrapartida pornográfica nativa era de 15 para uma (quinze filmes pornográficos estrangeiros para um brasileiro)”.

Mas é preciso lembrar que o próprio pornô ‘mundial’, nos cinemas, agonizava ao mesmo tempo em que crescia no mercado de vídeo. De um modo geral, a frequência às salas de exibição havia caído, principalmente nas grandes cidades do Brasil, em decorrência não só das mudanças provocadas pelo advento das salas de pornô, mas principalmente com a expansão do vídeo, a queda do poder aquisitivo do cidadão e a insegurança que passou a predominar nas ruas.

Por isso é forçoso reconhecer que, na realidade, o próprio cinema brasileiro definhava, não apenas o da Boca. Uma inflação altíssima (cerca de 80% ao ano) e, principalmente, a gradual falta de cumprimento da reserva de mercado por parte dos exibidores sem nenhuma punição ao governo (então presidido por José Sarney) acirraram esse declínio. Naturalmente o cinema da Boca já andava prejudicado pela concorrência da Embrafilme na distribuição. As pequenas produtoras e distribuidoras abandonavam o cinema. Até mesmo uma empresa com a gloriosa trajetória da Cinedistri não resistiu: a empresa criada por Osvaldo Massaini (que morreu em 1994) encerrou oficialmente as suas atividades em 17 de julho de 1992, pouco mais de dois anos da posse do presidente Collor.

Este, em seu curto governo, tinha dado o golpe fatal. Além de fechar a Embrafilme, encerrou as atividades da Fundação Cinema Brasileiro (mais voltada ao curta-metragem) e do Concine (o tímido órgão que, desde 1976, substituía o INC). Aí, sim, o nosso cinema ficou anos sem nenhuma política legislativa, sem nenhum mercado.

Técnicos, diretores, produtores e artistas da Boca, em sua maioria, entraram em depressão viram-se forçados a atuar em outras profissões. Nessa luta pela sobrevivência, um cineasta passou a trabalhar como corretor de imóveis, outro chegou a vender fitas de vídeo para as locadoras. Um técnico tornou-se vendedor de móveis, outro que ganhou o Kikito de Ouro sustentou a família como gerente de um bar no interior. Isso sem mencionar os que ficaram doentes, somatizando a frustração.

Consta, sem comprovação, um caso de suicídio dissimulado como morte acidental para a família beneficiar-se do seguro de vida.

São poucos os sobreviventes do cinema da Boca. Existem alguns que estão tentando retornar ao cinema, mas apenas dois podem ser apontados com certeza, como aqueles que, de fato, se adaptaram aos novos tempos do chamado cinema da retomada, quando o realizador tem que saber também captar financiamentos através das leis fiscais: Carlos Reichenbach Filho e Aníbal Massaini Neto. Aníbal tem a sua empresa, Cinearte, sediada na Rua do Triunfo, no mesmo espaço ocupado pela Cinedistri, que seu pai criou. “O fato da Cinearte possui como sede própria todo o andar de um edifício a custos que podem ser considerados modestos justifica tudo, não é?”, respondeu Aníbal sobre a razão de permanecer na Boca.

O cineasta, que em 2004 concluiu e lançou Pelé Eterno, está consciente das alterações, mas otimista.

“Infelizmente o tempo passa, as coisas mudam e esperemos que num futuro próximo seja para melhor do que, talvez, tenha sido até agora. Entretanto, o cinema nacional está aí, a despeito de tantas resistências, evoluindo técnica e artisticamente já vistos. Qual Fênix”.

Lições de um passado esplêndido

O Cinema da Boca do Lixo pode ser considerado uma lenda do século XX. Um período de equívocos e vitórias que aglutinou inúmeros e perseverantes talentos, possibilitando uma intensa criatividade. Dessa fase, podem-se extrair muitas lições, úteis nesse momento em que se discutem novos rumos para o cinema nacional, em especial da política de investimentos. “O mínimo que se espera de um filme que usou recursos públicos é que ele obtenha condições de exibição”, declarou o cineasta Orlando Senna, secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura em reportagem a revista Tela Viva, em novembro de 2004. Ele se referia ao debate sobre o ineditismo, a ausência de viabilidade comercial, de exibição para algumas produções feitas como benefícios fiscais, provocado por um auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União na conduta da ANCINE – Agência Nacional de Cinema. A manifestação do TCU foi dura quando aponta também certo descontrole na captação e movimentação de recursos, em especial em realizações que nunca chegaram ao público.

Como se voltem os olhos para o Cinema da Boca, vai se constatar que o desperdício de dinheiro raramente ocorria. Claro, o sucesso é algo imponderável e era também naquela época. Mas não se pode menosprezar o diálogo com o público, principalmente quando predomina o uso de subsídios governamentais. E esse uso tem que ser debatido. Não é justo que em um país com tantas carências como o nosso, cineastas esbanjem o dinheiro vindo de renúncia fiscal, extraído daquilo que seria imposta a pagar, em filmes inacabados por pura incapacidade do realizador. Ou então, que façam dessa maneira filmes com orçamentos grandiosos totalmente incompatíveis com as respostas de nosso mercado. Não é certo ainda que muitos dos diretores gastem demais, por exemplo, no uso do negativo que sempre foi a parte mais cara de um orçamento. Um filme intimista, lançado em 2004, foi feito com 35 mil metros de negativo para ter, em sua edição final, 3.300 m de material editado. Uma média de dez takes por um. Isso apesar de ter ótimos atores e o sistema de vídeo acoplado, dois elementos que possibilitam evitar a repetição inútil. Na Boca só em filmes com ação ou muita gente em cena se gastavam, no máximo, 12 mil metros de negativo. Na média, eram 20 latas de 300 metros, ou seja, 6 mil metros para aproveitar 3 mil.

O Cinema da Boca, que se auto-sustentava sem patrocínios, era mais racional. O Cinema da Boca era feito de forma obstinada, com disciplina e paixão. Por isso, a sua gente, seus realizadores, merecem todo o respeito, todas as homenagens possíveis. Essa é apenas uma delas e que procura resgatar a obra dos diretores que lá estavam.


Publicado originalmente em STERNHEIM, Alfredo. Cinema da Boca: dicionário de diretores. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005.

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